EXCELENTE TEXTO, ESCLARECEDOR. IMPERDÍVEL PARA
QUEM "NÃO ESTÁ ENTENDENDO" O QUE ESSE PESSOAL QUER".. Assim que eu
puder, traduzo para o Português coloquial, para que TODOS entendam e
não uma minoria acadêmica e privilegiada. Depois do texto do filósofo Pierre Levy (olhem no google) , este é o melhor que li até agora. Palmas!!
A organização dos sem organização: oito conceitos para pensar o
“inverno brasileiro”. A discussão oscila entre dois extremos: ou a massa
é um mero agregado de indivíduos, ou um todo indiferenciado e disforme.
por Rodrigo Guimarães Nunes
(...) Qual é o nome de uma legião, quando legião é seu nome?
Não é apenas questão de reconhecer uma identidade (“quem é essa
gente?”), mas de identificar uma vontade (“o que eles querem?”). Embora
os fatores desencadeadores mais evidentes (violência policial, aumento
do custo de vida, impactos dos megaeventos esportivos) sejam
relativamente generalizados, “o movimento” se manifestou por coisas
variadas, algumas até contraditórias; mais que uma diversidade de vozes,
uma diversidade de vontades. Como aponta uma análise da atividade das
redes sociais no período, as instituições a quem a democracia
representativa atribui as funções de mediar entre indivíduos e de formar
a vontade coletiva – partidos, sindicatos e mídia tradicional –
“perderam o posto de intermediário privilegiado” e o “monopólio de
interpretação” na proporção inversa à que o movimento crescia. Partidos,
sindicatos e movimentos organizados, que se julgava serem detentores
exclusivos do poder de mobilizar multidões, em que pese sua visível
decadência neste sentido, depararam-se com o que lhes era impensável: um
movimento de massa sem organizações de massa.
Entre a compulsão de
lamentar nostalgicamente a falta de unidade e aquela, simétrica, de
celebrar efusivamente a pluralidade, parece haver algo que se perde. A
discussão oscila entre dois extremos: ou a massa é um mero agregado de
indivíduos, ou um todo indiferenciado e disforme. No primeiro caso,
temos o mito dos indivíduos atomizados que se conectam em resposta a
chamados de Facebook ou Twitter; no segundo, o da turba irracional que
dissolve as individualidades, agitada por aleatórias paixões de grupo.
Nem uma coisa nem outra, esta massa possui diferenciação interna: se a
pensamos como uma rede, esta tem zonas mais densas e organizadas, de
conexões, afinidades e identidades, algumas delas preexistentes aos
protestos (Comitês da Copa, Movimento Passe Livre...). E esta
diferenciação é contínua: indivíduos e zonas que os agrupam estão em
movimento e transformação, ganhando ou perdendo conexões, mudando de
identidade e tamanho, gravitando para perto ou longe de outras zonas. Em
que pese a importância das redes sociais, então, o movimento sem nome
não se criou “do nada” entre indivíduos desconectados, mas a partir de
alguns núcleos que, se não o “organizam” como um todo, não deixam de ser
um dado fundamental de sua estrutura.
Até pouco antes dos protestos
massivos de junho, quem acreditava que não há política de massa sem
organizações de massa argumentava que o “ativismo” das redes sociais
produz apenas laços fracos (“curtir”, “compartilhar”), e não o grau de
compromisso que um movimento de rua exige. Estavam errados? Não
necessariamente. Numa zona mais densa e organizada, a quantidade e
intensidade dos laços entre os indivíduos que a integram é maior.
Precisamente, o contágio dos protestos não avançou de laço fraco em laço
fraco, átomo em átomo, mas num movimento entre zonas de laços mais
fortes (Comitês da Copa, frentes de luta pelo transporte público,
núcleos do Anonymous e seus entornos) e uma cauda longa de laços
fracos.[3] Mais que isso, em situações especiais, como as vistas em
junho, a quantidade de conexões possibilitada pelas mídias sociais pode
se converter na qualidade de laços mais fortes. Estes são casos em que,
para um número expressivo de indivíduos, o limiar de participação (a
“inércia” entre o apoio passivo e o engajamento efetivo) se torna mais
baixo. Quanto mais baixo o limiar, mais pessoas vão às ruas; quanto mais
pessoas vão às ruas, mais laços – especificamente, mais laços fortes –
são criados. É assim que o movimento se alastra.[4]
Mas o que
cria estas situações especiais? Estaria mentindo quem dissesse ter a
fórmula. O que se pode ver é que os núcleos formaram a “infraestrutura”
básica do contágio num primeiro momento. À medida em que a onda crescia,
eles não se dissolviam no interior do movimento, que se mantinha
internamente diferenciado; pelo contrário, tendiam a crescer, agregando
mais conexões e nós. Ao mesmo tempo, porém, o influxo de novos nós logo
passa a exceder sua capacidade de agregação, e sua importância é
relativizada pela emergência de novos núcleos, ou a entrada de outros já
existentes (por exemplo, agrupamentos de direita). O número de conexões
e a intensidade dos laços cresce muito e rápido; forma-se um
sistema-rede (o “movimento”) radicalmente maior e radicalmente mais
diverso, com uma topografia bastante distinta da infraestrutura
original. Não é o caso que as demandas e vontades expressas se
dissolveram num genérico “contra tudo que está aí”, mas que elas se
tornaram menos audíveis em meio a um número maior de vozes.[5]
Assim como o ouvido sintetiza o som de incontáveis ondas quebrando num
único “ruído no mar”, a pauta difusa e os mínimos denominadores comuns,
vistos de perto, são uma pluralidade de vontades, clara ou confusamente
formuladas. Mas houve, além disso, uma tentativa deliberada da mídia
corporativa de ressignificar o movimento como genericamente anti-status
quo, a fim de atingir o governo federal. A reação dos núcleos
desencadeadores foi, então, chamar a atenção para os temas específicosde
seu início (transporte público, policiamento, Copa etc.) – sinalizando,
justamente, uma estrutura interna que não era nem atomização (“cada
cabeça, uma sentença”), nem o indiferenciado (“contra tudo que está
aí”). A manobra, que dependeu da criação de novos núcleos e identidades,
como assembléias populares e ocupações, foi bem-sucedida em evitar a
apropriação.
O auge do temor que os protestos pudessem ser
“sequestrados” pela oposição foi quando mais se ouviram críticas a sua
falta de “direção”. Pelo modo como usavam a palavra, os críticos
pareciam partir de três premissas: apenas organizações de massa podem
ser “direção”; apenas uma estrutura formal de liderança, como as destas
organizações, é capaz de formar uma vontade coletiva; na ausência destas
organizações, há apenas ou uma multidão de átomos, ou uma turba
disforme, facilmente manipulável.
Os movimentos surgidos em
todo mundo desde 2011 demonstram que as três estão erradas. Uma
característica fundamental de sua diferenciação interna é a liderança
distribuída.[6] Não se deve concluir daí que seus “verdadeiros” líderes
estão escondidos em alguma parte; mas que, ao invés de “sem líderes”,
eles formam “lideranças” de forma contínua e espontânea. Que tipo de
liderança?
Deve-se entender a “horizontalidade” destes
movimentos como ausência de estruturas formais de liderança, não no
sentido (absurdo) que cada indivíduo teria, a cada momento, exatamente o
mesmo peso que qualquer outro. A ausência destas estruturas, e portanto
de critérios institucionais para definir quem é ou pode ser “líder”,
somada a um sistema-rede densamente conectado, onde a informação viaja
rápido e novas conexões aparecem a todo momento, significa que um
indivíduo ou grupo não precisa de um status pré-estabelecido de
“liderança” para lançar uma ideia ou iniciativa capaz de conquistar
adesões exponencialmente maiores que qualquer ideia ou iniciativa que
tenham tido antes.
Seu alcance pode ser mais amplo (as
ocupações de câmaras de vereadores em todo Brasil) ou menos (a decisão
de tomar um atalho numa manifestação); pode estabelecê-los como
referências futuras, ou não.[7] Se “horizontalidade” não quer dizer
igualdade absoluta, é porque não existe uma topografia plana, um mercado
ideal de opiniões: nós mais conectados tendem, obviamente, a ser mais
ouvidos. Ao mesmo tempo, novas iniciativas e lideranças podem emergir a
todo momento, reconfigurando a topografia. Todos são potencialmente
iguais no sentido de que são potencialmente líderes – embora na prática,
a cada momento, alguns sejam sempre “mais iguais” que os outros.
Nestas condições, “direção” não é nem um título vitalício que se
adquire por lutas passadas, nem uma propriedade mágica que adere a
estruturas formais; é apenas o nome que descreve quem se demonstra, na
prática, capaz de direcionar o curso do movimento em um momento dado.
“Direção”, em resumo, é quem dirige, no momento em que dirige.A massa se
move por meio da iniciativa destes diferentes núcleos em diferenciação
contínua; vários deles ao mesmo tempo, de tamanhos e alcances maiores e
menores, cada um uma direção imanente, temporária e (relativamente)
espontânea.
E agora, em que direção apontam as direções? O
processo de re-diferenciação que estamos vendo – em que o “movimento”
único, que sai as ruas enquanto tal, tem se especificado em alvos e
ações mais focadas (passe livre, Fora Cabral, Aldeia Maracanã...) –,
além de ser natural, talvez resulte diretamente do esforço para impedir
as tentativas de apropriação. Em todo caso, ao contrário de um Occupy
Wall Street, que durante meses discutiu se era legítimo apresentar
demandas, o movimento brasileiro desde o início teve algumas claramente
definidas: redução das tarifas, fim das remoções, desmilitarização da
polícia... O que se vê no momento é, em geral, a identificação dos alvos
e pontos de pressão taticamente relevantes para a obtenção de objetivos
ainda não alcançados.
Engana-se quem pensa que o fim
(temporário?) das grandes manifestações de rua significa que aquele
momento passou. Como dizem os espanhóis a respeito do 15M, o “DNA” de
junho segue ativo, entrando em novas combinações, mutando de formas
inesperadas. Mesmo que não vejamos mais marchas de um milhão de pessoas,
criou-se um sistema-rede muito mais denso e extenso que antes, o que
significa que o potencial de contágio e a capacidade latente de
mobilização são muito maiores agora que há alguns meses.
A
questão que se coloca, então, o que fazer daquilo que vai além das
demandas específicas – o desejo expresso pelas ruas de transformações
propriamente sistêmicas da política, dos mecanismos de participação, das
relações entre estado e população, capital e trabalho? Como combinar o
retorno a pautas localizadas e objetivos imediatos com este horizonte
mais amplo?
Muito sobre isso se aprenderá nos próximos meses;
mas uma reflexão sobre o tema mais diretamente ligado à eclosão do
movimento – o passe livre – pode ajudar. A riqueza desta luta, que lhe
permitiu assumir ressonância tão ampla, está em partir de um objetivo
claro, imediato e amplamente consensual (redução das tarifas) para uma
discussão mais ampla (lucro das empresas, qualidade dos transportes) e
objetivos de médio prazo (abertura das planilhas, passe livre para
alguns setores etc.), apontando sempre para uma transformação radical
das relações entre capital e trabalho, população e estado (transporte de
qualidade gratuito, financiado pela redução do lucro das empresas e
impostos progressivos). No que o marulho de vozes começa a se
diferenciar em demandas específicas, manter acesa a possibilidade de
objetivos mais amplos talvez dependa de conseguir dar a estas demandas
este tipo de direcionalidade.
EXCELENTE TEXT
Rodrigo Guimarães Florindo Nunescarnevale
Professor de filosofia na PUC-Rio, coordenador do grupo de pesquisa
Materialismos(CNPq) e membro do coletivo editorial de Turbulence.